terça-feira, 6 de março de 2012

“SILO JESUITICO DE SANTA TECLA” COMEÇA A SER DESVENDADO. NA VERDADE, UM FORNO DE CAL.


                                                      Notícia-Silo Indígena


Por Cássio Lopes


Um mistério de 40 anos enfim começa a ser desvendado. Por ocasião das escavações na área do Forte de Santa Tecla, iniciadas em 1969, o renomado historiador Tarcisio Antônio Costa Taborda aproveitou a presença na cidade do arqueólogo Fernando La Salvia, para verificar resquícios de construções em pedra próximas dali, à beira do chamado Arroio Alexandrina. No entanto, a atenção era centrada nos resquícios do extinto baluarte, tanto que em janeiro de 1970 era inaugurado um museu no seu costado.
O mesmo arqueólogo retornou a Bagé nos anos 80, sendo que, em fevereiro de 1982, o então Correio do Sul trazia na capa uma surpreendente manchete: “ENCONTRADO INTACTO EM SANTA TECLA SILO INDÍGENA DE PEDRAS COM MAIS DE 300 ANOS”. Embora a relevância histórica, talvez tivesse sido ofuscada por outro acontecimento, traduzido num sentimento de luto para cidade na ocasião, que foi a morte do Bispo Dom Angelo Mugnol. La Salvia, posteriormente, apresentou um artigo durante o VII Simpósio Nacional de Estudos Missioneiros no ano de 1988, convencionando ser um “Silo” no que intitulou: “REMANESCENTES DAS ATIVIDADES AGRO-PASTORIS DENTRO DO ESPAÇO MISSIONEIRO”, onde relata: “Nossa atividade em 1984, foi prejudicada pelo uso indevido das terras onde se localiza o silo do Posto”. Entendia, porém, tratar-se do antigo Posto de Santa Tecla, pertencente a grande Estância de São Miguel. Ao descrever originariamente esse local: “Como área principal e central, a praça, no entorno, a Capela e as casas e, separadas por um muro, estão às estruturas pertinentes à atividade agro-pastoril propriamente dita” diz que entre 1969 e 1984 sobrou pouca coisa. Persistia, no entanto, intacto, o suposto “Silo”e algumas pedras que indicavam no passado a existência de valos ou cercas.
Mais recentemente, outras menções ao local encontram-se nas obras de Eron Vaz Mattos (Aqui Memorial em Olhos d’água/2003) e Elizabeth Macedo de Fagundes (Inventário Cultural de Bagé/2005), aludindo o estudo do falecido arqueólogo La Salvia. Por último, em janeiro de 2006, antevendo as comemorações dos 250 anos da morte de Sepé Tiarajú, ocorrida na chamada Guerra Guaranítica, autoridades locais após encontro na Câmara de Vereadores juntamente com um cacique guarani teriam visitado o “Silo”. No mesmo ano, Cláudia de Oliveira Uessler, em sua tese de doutorado em História na PUCRS, denominada: “SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS E ASSENTAMENTOS FORTIFICADOS IBERO-AMERICANOS NA REGIÃO PLATINA ORIENTAL”, analisando essas ruínas, referindo outro pesquisador, Antonio Lezama, sugere que a estrutura trata-se de um “forno de cal”. A mesma historiadora, em recente participação no livro: “MISSÕES EM MOSAÍCO / DA INTERPRETAÇÃO À PRÁTICA: UM CONJUNTO DE EXPERIÊNCIAS” (2011) ressalta: “improvável à hipótese daquela estrutura tratar-se de um ‘Silo’, pois localizado na barranca de um arroio, a umidade não favoreceria tal estabelecimento”. Comparou com algumas “caleras” também em ruínas existentes no nosso estado (São Nicolau e Caçapava do Sul) e no país vizinho Argentina.

              Edilberto Lucas e Cássio Lopes na limpeza da caleira

Ocorre que, por iniciativa do Núcleo de Pesquisas Históricas de Candiota, a cargo desse presidente, e por indicação do local através do escritor e poeta Eron Vaz Mattos, foram realizadas nos dias 03 e 07 de setembro de 2011, duas incursões, onde após a retirada de alguns arbustos que o cobriam, tomaram-se suas medidas e proporções. Logo a seguir, alguns questionamentos foram levantados. A umidade realmente não favoreceria o depósito de grãos ou sementes. O lugar era muito acanhado para um Posto Jesuítico, e finalmente: Seria possível até 1969 encontrar-se “intacto” um conjunto de estruturas beirando 300 anos ou mais? As próprias Missões Jesuíticas não resistiram e o que sobrou precisou ser restaurado.
Com ajuda de outro pesquisador bageense, Edgard Lopes Lucas, e após alguns estudos, começamos a desvendar o mistério. Foi frutífera igualmente algumas informações colhidas no Museu Antropológico do RGS, onde repousam alguns materiais da época das escavações e vindas a esta cidade, pelo arqueólogo Fernando La Salvia, e a atenção daquele quadro de funcionários, especialmente pelo Arienei Abreu, técnico em assuntos culturais. A partir do que La Salvia, chamado por Tarcisio Taborda referia, que a Capela próxima ao Silo tinha sua abertura voltada ao NE (Nordeste), concluímos não tratar-se do Posto Jesuítico. É que pelo Diário da Expedição escrito pelo capitão português Jacintho Rodrigues da Cunha, quando chegaram ao verdadeiro Posto de Santa Tecla em 1756, a abertura da Capela era voltada ao ocidente (Oeste). Outros documentos do século XVIII/XIX localizam o Posto Jesuítico em questão ao norte do que fora o Forte de Santa Tecla (e não ao leste, a posição do “Silo”). Por exemplo, no que copilou o famoso Pedro de Angelis: “...á principio Del año siguiente, se construyó El fuerte de Santa Tecla, uma légua mas al sud de uma poblacion que habian tenido nuestros índios Guaranís com el mismo nombre, cuyas ruinas aun se hallaban bastante frescas” (COLECCIÓN DE OBRAS Y DOCUMENTOS RELATIVOS A LA HISTORIA ANTIGUA/Buenos Aires, 1837). Também é notório que dito Posto de Estância foi totalmente queimado pelos próprios índios, ante a chegada dos exércitos espanhol e português durante a Guerra Guaranítica. Sendo constituídos os ranchos de paredes tipo“pau-a-pique” e cobertos com “santa-fé”, não havendo qualquer referencia de estruturas em pedra.

                                              Caleira já limpa


O que contribuiu decisivamente para a verificação de que o “Silo” nunca objetivou ser um depósito de grãos ou sementes e nem possuía 300 anos, foi à consulta a algumas fontes estrangeiras importantes, disponíveis na Internet. O renomado historiador Norberto Levinton, arquiteto e doutor em História residente em Buenos Aires, que colabora em restaurações de povos missioneiros, em artigo datado de 22/05/2010, intitulado: “ARQUITECTURA DE LAS MISIONES JESUÍTICAS” registra que: “En 1793 se compraron para la obra de La iglesia del Pueblo de San Miguel 5000 fanegas de cal (alrededor de 180.300kg) para abastecer la obra de recomposición del edifício, que vênia de una cantera a Santa Tecla”. O mesmo historiador indica a fonte pesquisada – AGNA (Arquivo General Nacional del Argentina, Sala IX, 5-4-3, 15 de enero de 1791). Outra fonte correlacionada diz que o “cal” era: “extraído de uma Calera ubicada em las cercanias Del Fuerte de Santa Tecla” (AGNA, Sala IX, 30-5-1, San Miguel, 12 de junio de 1793).
Mais outra fonte contemporânea, o historiador Ramón Gutiérrez, em artigo: HISTORIA URBANA DE LAS REDUCCIONES JESUÍTICAS SUDAMERICANAS: CONTINUIDAD, RUPTURAS Y CAMBIOS (SIGLOS XVIII-XX)” traz maiores detalhes sobre o suposto “Silo”. Anos depois da expulsão dos padres jesuítas da América, inclusive dos Sete Povos das Missões, ocorrida em 1768, e passados os períodos das demarcações do Tratado de Santo Ildefonso (1777), já em dezembro de 1792, sob a administração espanhola, o encarregado do Povo de São Miguel, Bartolomé Coronil, passou seis meses em Buenos Aires para tratar de sua saúde, e foi recomendado pelos demais pares de administração, integrantes do “cabildo”, para lá gestionar a reedificação do templo. Em 21 de abril de 1789 durante uma tempestade, um raio seguido de um incêndio, destruiu consideravelmente a “cubierta” sobre o transepto estendendo-se aos retábulos e portas daquela catedral. O argumento utilizado foi de que não ficava bem aos espanhóis e seus administrados “rezarem missa” em uma pequena capela adjacente, dedicada a Nossa Senhora de Loreto. Ainda na estadia da capital, se autorizou o reparo da igreja, tendo sido indicado o mestre de obras Rafael Azcura, que viúvo dispunha de tempo para a empreitada além de entender perfeitamente o idioma guarani.
Também descreve-se que: “Havendo alcançado permissão desta superioridade para uma calera nas imediações da Guarda de Santa Tecla no habiendo surtido efecto/contrata em 8 de setembro de 1793 com Juan Carlos Uriglia para por em porto de Acapuiau 5.000 fanegas de cal e pagar em erva de boa qualidade”.A quantidade de 5.000 fanegas de cal eram antigamente equivalentes a 180.300 kg.
Verifica-se, com isso, que o “Silo” originariamente foi idealizado como calera ou forno, embora por razões ainda desconhecidas não tivesse o êxito esperado, mas ficaram as edificações para os operários. Vale lembrar que suas mangueiras de pedras poderiam servir de paragem para animais, pois essa região também era caminho das tropas de mulas que saíam do Uruguay em direção a Viamão. Em 1801, quando da retomada definitiva da Coxilha de Santa Tecla e do baluarte pelos portugueses, chefiados por Patrício Correa Câmara, não se menciona o lugar.
Tais informações revelam que os “Silos”, em verdade, mais de um, foram uma tentativa no final do século XVIII de “fabrico de cal” ou “calcinação” e que serviria para reconstituir a igreja de São Miguel, famosa ruína do estado do Rio Grande do Sul. De fato, finalizaram a reforma, mesmo que tivesse ficado mais curta no comprimento da nave central e sem a cúpula no formato originário de “meia laranja”. Os administradores espanhóis e não os jesuítas levantaram o complexo à margem do Arroio Alexandrina, resguardado pela Guarda Espanhola, que subsistiu, mesmo após a primeira derrocada do forte, em 1776. Entulhos encontrados no seu interior (louças, vidros...) ali foram depositados mais recentemente.
O suposto “Silo” que nada mais é que uma “Calera” ou “Horno” como dizem os castelhanos, apesar de não ser do Período Jesuítico e nem pertencer ao antigo Posto de Santa Tecla da Estância de São Miguel, mas sim do Terceiro Ciclo das Missões, evidencia-se, igualmente, como um marco histórico para a cidade de Bagé, levantado na década de 90 do século XVIII. É de observar-se, que no próprio local, numa encosta de cerro existem até hoje vestígios de uma possível pedreira, bem como no próprio Arroio Alexandrina, mais ao sul, verificável até mesmo no Google Earth.
Portanto, se deduz a importância da revisão dos relatos de uma parte de nossa história, acontecimentos ocorridos antes dos 200 anos da fundação de Bagé.
Para finalizar, destacamos que o objetivo da presente matéria, em nenhum momento foi desmerecer o trabalho dos autores citados, pelo contrário, queríamos agradecer a: Eron Vaz Mattos, Elizabeth Macedo de Fagundes, Tarcisio Antônio Costa Taborda e Fernando La Salvia, pois se não fosse suas pesquisas nunca teríamos chegados a esse tão importante resultado.